Moradias estudantis sem violência de gênero

A campanha visa desvelar, nomear e dar visibilidade às diferentes formas de violências de gênero que podem ocorrer no âmbito das moradias estudantis, sejam elas institucionais ou nas repúblicas de estudantes que se formam no entorno de cidades universitárias.

Por Lalesca Pinheiro Pires, Maria Natalia Dias Calixto e Prislaine Krodi dos Santos 

Cartazes da campanha “Moradias estudantis sem violência de gênero”
(Arte: Gabriela Maria Marques e Maria Clara Santos Fialho/ USP Mulheres)

O Escritório USP Mulheres e a Superintendência de Assistência Social (SAS) lançam neste mês de março a campanha Moradias estudantis sem violência de gênero, que busca dar visibilidade às formas de violência de gênero que podem ocorrer também nas moradias estudantis. Com caráter informativo e educativo, a campanha retrata cenas tendo a moradia universitária como pano de fundo, buscando desvelar e nomear as diferentes violências de gênero, incluindo algumas menos conhecidas da população em geral, como a psicológica e a patrimonial. 

A campanha se localiza como um desdobramento da criação do  Protocolo de atendimento da SAS para casos de violência de gênero contra mulheres na Universidade. O documento foi elaborado ao longo do ano de 2020, no contexto da pandemia da covid-19, a partir da leitura de referenciais técnicos e teóricos, encontros e discussões entre a equipe da SAS e a área de Programas do Escritório USP Mulheres, contando com contribuições fundamentais das assistentes sociais de outros campi da USP. A portaria que o institui foi assinada pelo Reitor Vahan Agopyan e publicada no Diário Oficial em dezembro do mesmo ano. 

Como ferramenta complementar, o Escritório USP Mulheres disponibiliza em seu site o Mapeamento de serviços de atendimento às mulheres em situação de violência em todas as cidades em que a USP possui campus ou unidade. O Mapeamento tem o intuito de informar a comunidade e auxiliar os profissionais responsáveis pelo acolhimento inicial, oferecendo recursos e informações sobre a Rede de atendimento, incluindo dados sobre o funcionamento durante a pandemia de covid-19. Os encaminhamentos devem ser definidos de forma compartilhada com a mulher em situação de violência, valorizando sua autonomia, sua vontade, respeitando seus recursos e limites durante todo o processo de acolhimento e avaliando os riscos, benefícios e impactos que cada ação pode gerar à vida das mulheres.

O primeiro passo para apoiar uma mulher na construção conjunta de uma saída para a situação de violência é o reconhecimento da própria violência que está sendo vivida. Revelar as agressões sofridas é uma barreira difícil de ser rompida, portanto, diante de um relato de violência ou pedido de ajuda, é fundamental acreditar, não duvidar e oferecer apoio.

Violência doméstica nas moradias estudantis?

Assim como na sociedade em geral, os marcadores sociais como os de classe, raça e gênero, estão presentes no ambiente universitário e evidenciam desigualdades, desequilíbrios e assimetrias. As salas de aula, laboratórios, refeitórios, bibliotecas, assim como as moradias estudantis e demais espaços comuns são ambientes nos quais as violências, dentre elas as de gênero, podem se manifestar. 

A Lei Maria da Penha reconhece que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. No artigo 5º, a Lei define como violência doméstica e familiar “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” que ocorra no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família e/ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Nas moradias estudantis, sejam elas as institucionais ou as repúblicas de estudantes que se formam em cidades universitárias, há relatos de situações de abusos e violação de direitos que reproduzem desigualdades estruturais presentes na sociedade brasileira, como as de gênero, raça, etnia, classe, origem e idade. Cenas de humilhação, atribuição desigual de tarefas domésticas, restrições e regras de funcionamento da casa, abusos físicos e sexuais configuram-se como expressões da violência contra as mulheres baseada no gênero. Ou seja, violências que são dirigidas contra uma mulher porque ela é mulher ou que as afeta desproporcionalmente (CEDAW, Recomendação Geral No. 35). 

Em 2017, a Comissão contra a Violência de Gênero do CRUSP divulgou um relatório que contempla os resultados, as análises de documentos, de depoimentos e conhecimentos especializados das integrantes para a elaboração de um diagnóstico em relação aos casos de violência de gênero que ocorrem nas dependências da residência estudantil e os procedimentos institucionais adotados.

Na USP, várias iniciativas vêm sendo desenvolvidas para dar visibilidade, enfrentar e reverter a desigualdade de gênero estrutural presente também em sua comunidade. Responder de forma sensível para as diferentes formas de discriminação e violência de gênero contra as mulheres inclui ações como a oferta de acolhimento adequado, apuração das denúncias, responsabilização dos agressores, realização de ações educativas e a promoção de mudanças culturais. Ações que devem ser realizadas de modo contínuo, reflexivo e em permanente diálogo com a comunidade. 

Em relação ao acolhimento, na condição de serviço de atendimento geral, o Serviço Social da SAS funcionará como uma porta de entrada inicial para as mulheres em situação de violência de gênero, realizando o primeiro acolhimento e viabilizando o acesso aos recursos e serviços adequados às suas demandas. Também podem buscar o Serviço as pessoas que tenham presenciado uma violência contra mulheres ou que estejam prestando auxílio e informações.

Em casos de violência que ocorram dentro dos campi, a Guarda Universitária deve ser acionada. É possível ligar diretamente ou utilizar o aplicativo de celular Campus USP, desenvolvido pela STI (Superintendência de Tecnologia da Informação) em parceria com a SPPU (Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária). No aplicativo, é possível chamar a central da Guarda Universitária do seu campus, registrar ocorrências, inclusive de violência contra a mulher e acionar o estado de alerta no telefone.

Em uma situação que envolve risco imediato, urgência ou necessidade de rápida intervenção, deve-se acionar o Ligue 190 da Polícia Militar, disponível 24h por dia, em todo o território nacional. A central atende pedidos de socorro ou denúncias de agressão em andamento envolvendo conflitos domésticos.

Violência doméstica e covid-19

Com o isolamento social e a limitação ao acesso de serviços e recursos, o aumento da violência doméstica tem sido amplamente reportado em vários países.

A ONU Mulheres vem alertando desde o início da pandemia covid-19 para uma outra pandemia, a pandemia invisível da violência contra as mulheres e meninas. Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU Mulheres e vice-secretária geral das Nações Unidas, declarou que “Mesmo antes da existência da Covid-19, a violência doméstica já era uma das maiores violações dos direitos humanos. Nos 12 meses anteriores, 243 milhões de mulheres e meninas (de 15 a 49 anos) em todo o mundo foram submetidas à violência sexual ou física por um parceiro íntimo. À medida que a pandemia da Covid-19 continua, é provável que esse número cresça com múltiplos impactos no bem-estar das mulheres, em sua saúde sexual e reprodutiva, em sua saúde mental e em sua capacidade de participar e liderar a recuperação de nossas sociedades e economia”.

Na mesma declaração a ampla subnotificação de formas de violência doméstica é destacada, já que menos de 40% das mulheres vítimas de violência buscavam qualquer tipo de ajuda ou denunciavam o crime e menos de 10% das mulheres que procuravam ajuda iam à polícia. 

No Brasil, segundo o Balanço Ligue 180, a maioria dos casos de violência doméstica reportados têm como autores de violência companheiros (33,15%), ex-companheiros (17,94%) e cônjuges (12,13%), apresentando um recorte de raça entre as mulheres em situação de violência com maior recorrência entre mulheres autodeclaradas pardas, com idades entre 25 e 30 anos.

Para dar visibilidade às mudanças e impactos na vida das mulheres com a pandemia de covid-19, o Escritório USP Mulheres realizou duas campanhas em 2020. A primeira foi a campanha “A USP unida pela igualdade de gênero”, que procurou conscientizar a comunidade universitária sobre a necessidade de uma justa divisão de tarefas domésticas e de cuidados com familiares, durante (e após) o período de isolamento social. A segunda campanha, “A USP ‘mete a colher’ na violência doméstica”, visava incentivar a comunidade universitária a identificar esse grave problema social, oferecer ajuda e intervenção adequadas, ampliando o debate e o conhecimento de recursos disponíveis em sua região. 

Campanha nas Moradias Estudantis

Para essa campanha, foram criadas peças que retratam seis formas diferentes de violência de gênero que podem ocorrer no âmbito das moradias estudantis, seguidas da identificação/nomeação da violência representada em cada história e orientação de onde buscar ajuda. Os textos enfatizam que os espaços e as moradias podem ser compartilhados, mas os direitos das mulheres devem ser sempre respeitados, inclusive o direito a uma vida sem violência.

As situações e as personagens representadas foram criadas a partir de relatos de moradoras do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP) e das formas de violência de gênero mais frequentemente reportadas às assistentes sociais da SAS. Os nomes utilizados são fictícios e as imagens foram retiradas de um banco público disponível online.

Os cartazes serão encaminhados em três blocos para todos os dirigentes de unidades, órgãos centrais e prefeituras dos campi para ampla divulgação e podem ser utilizados tanto de forma física – sendo impressos e afixados nos espaços comuns das moradias, quanto virtual, por meio da divulgação em redes sociais e emails institucionais. O QR Code direciona para a página da SAS onde está a apresentação do Protocolo de atendimento para casos de violência de gênero contra mulheres na Universidade e orientações de como agendar um atendimento, incluindo a opção do Clique Social para estudantes da graduação. 

A divulgação ocorrerá durante todo o mês de março, em homenagem ao Dia Internacional das Mulheres, começando com as peças que abordam as violências moral, racial e física.

Revisão e divulgação: Elaine Castilho dos Santos

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